segunda-feira, 5 de agosto de 2013

I

Gosto dos cheiros que me levam a lugares desertos. Cheiros que me remetem a lugares que não me remetem a nada nem a ninguém. Cheiros que eu cheiro e de repente estou lá, pulsante e viva de tanta solidão. Parece-me que quando se está só, reacende-se a vida perdida na multidão - a multidão é o exílio de si mesmo, e o exílio exaure a carne. Por isso gosto de estar bem entregue à completa distração, e sentir de repente a invasão da febre, louca e breve, de quem se reconhece. É como o instante de alívio na dor. Se minha narrativa fosse pintura, e me dessem tela e tinta, eu não pintaria nada - a obra seria o vão. Se fosse fotografia, talvez capturasse o silêncio absoluto em preto e branco. Mas minha narrativa, feita tão somente dela mesma e sua significação, constrói aqui a imagem de um eu, único, no centro de um país de espelho. E como é bom sentir-se abraçada por seu próprio leito; deixar descer, naturalmente, o caldo escuro e condensado das mais secretas mazelas. Como é glorioso deixar que brilhe agudamente, tal qual purpurina, a mais íntima podridão. Não entendo o homem que constrói sua identidade sob a identidade do outro. Não entendo o homem temente aos estados solitários, estados cuja força se encerra justamente em seu vazio. Entendo de gente que sente cheiro e se entrega: embarca, navega e aporta. Gente que pausa a opressora farsa e viaja ao encontro de sua própria imensidão. Imagine eu nua, selva escancarada diante desse espelho. Imagine que eu me descasco e  me descubro frente à minha dolorida face. Agora imagine o quanto de mim ponho nas coisas (foi o creme de cabelo que passei hoje à tarde).